Um editor certa vez me disse que um bom texto começa com um bom título. Eu não sei se será o caso desta crônica (nem pelo título, nem pelo sumo) mas, de todo modo, o nome do artista famoso e a sequência de 4 setes foram empregados deliberadamente como artimanha pra chamar a atenção do leitor. Só que o engodo tem pernas curtas e já preciso revelar que não tratarei de fato extraordinário, envolvendo o roqueiro Cazuza, que tenha a ver com a numerologia do sete. O assunto aqui é pessoal e memorialístico. Mas se você chegou até este ponto, convido-o a continuar, pode ser que se identifique com a estória.
Cazuza é o nome de um livro, o primeiro que li, aos 11 anos. Na contracapa estão escritos com canetinha hidrocor o meu nome e a data, de ares cabalísticos: 7/7/77. Lá se vai quase meio século e não sei como o livrinho conseguiu se salvar. O fato é que me afeiçoei a ele como a uma joia, um amuleto. Há algumas semanas, reli prazerosamente a história do menino maranhense apelidado Cazuza, xará do compositor carioca. Sobre a experiência de releitura, de reencontros, de reminiscências é que quero discorrer neste texto.
A obra de Viriato Corrêa é um clássico da literatura infantojuvenil brasileira, da qual se recordará o pessoal mais experiente. Publicado pela primeira vez em 1938, Cazuza teve inúmeras edições; a que tenho em mãos é a 25a, de 1976, produzida pela lendária Companhia Editora Nacional. Trata-se de uma deliciosa coleção de crônicas — com traços autobiográficos — organizada em capítulos curtos, com ilustrações de Renato Silva. São as memórias do escritor, desde Pirapemas, “um dos lugarejos mais pobres e mais humildes do mundo” às margens do Rio Itapecuru, no Maranhão, até a capital São Luís.
Muitos quilômetros e muitas décadas separam a infância de Viriato Corrêa da minha, mas elas são incrivelmente parecidas. Vivi até os 10 anos num povoado, com ruas de terra, assentado no sopé das montanhas mineiras. Naqueles começos dos 70, a vila — uma antiga estação da ferrovia Bahia-Minas — não tinha energia elétrica, nem água encanada, nem esgoto, mas tinha outras comodidades: uma escola, uma igreja, um coreto, 4 ou 5 mercearias, um rio e um campo de futebol. A meninice na roça, sem televisão e outros aparelhos deletérios, nos jogava no mundo real, das ruas, dos caminhos sem fim, dos morros, cavalgadas, pescarias, banhos de rio e caçadas de passarinhos (Oh, inocente malvadeza!). Cazuza-Viriato e eu andamos por trilhas semelhantes.
Passear por aquelas páginas amareladas me trouxe um outro encontro, com uma mulher, uma linda mulher, de grandes olhos morenos. Foi ela que me comprou o livro, e me comprou o uniforme, os sapatos, o agasalho, a pasta de dentes, a carne moída com quiabo, o remédio roxo que curou minhas feridas. Ela que, na flor dos seus 32 anos, abdicou de si mesma para heroicamente tutelar a vida de 4 filhos, e se multiplicou como professora, comerciante, depiladora, viajante, o diabo, pra que não lhes faltasse a ração diária: o alimento e o cuidado. Acho que estou ficando excessivamente confessional, mas eu precisava falar da minha mãe e da rara dignidade dela, que emergiu dessas lembranças.
Escrevi lá atrás que não falaria sobre o Cazuza mais conhecido, nem sobre numerologia, mas não consigo evitá-los. Os dois cazuzas fizeram parte da minha vida e a numerologia parece querer juntá-los, como se eles fossem versos soltos de uma mesma canção. O rock embalou a minha juventude, e a poesia daquele garoto rebelde ainda mais. Vi-o exuberante e vi-o definhar, cantando sua ideologia como um grito de sobrevivência. E vejam que curioso: o dia triste em que Cazuza partiu no seu trem para as estrelas era um sábado, sétimo dia, e outro 7/7. Pitágoras deve ter uma explicação.
*Goiânia, outubro/2024
Mais um texto prazeroso. Memórias da criança em um mundo real. Valeu, Luciano de Castro
Muito obrigado, Renato.
Mães e Cazuzas sempre me emocionam. Lindo, texto! Parabéns, meu amigo Luciano!
Obrigado, Inah. Inclusive a mãe do nosso Cazuza, a Lucinha Araújo, nos dá um exemplo de força e luta.
Bravo!!! Que bonito essa delicadeza e reconhecimento à sua mãe!
Fluidez na escrita e na leitura , bela concatenação ! Parabéns dr Luciano
Obrigado, Dr. Juliano.
Tudo que escrevi é pouco diante do que ela fez, Lilian. Obrigado!
História bonita de se ler sobre o ordinário da vida. Lindo como você descreve sua mãe e seus desdobramentos profissionais para ofertar a “ração” de cada dia. Pois apesar das multitarefas para fornecer alimento para você e seus irmãos, lhe sobrava tempo para o cuidado. Entendo cuidado como carinho, zelo e aconchego.
Obrigada por compartilhá-la conosco.
Agradeço a gentileza, Marília.
Parabéns ao grande cronista mineiro Luciano de Castro. Texto de leitura suave relatando tempos em que a leitura se amarelava e corria o risco de ganhar traças e não vírus
Elogio de historiador e escritor mineiro é um grade incentivo. Obrigado, Márcio !
Mais uma belíssima crônica de Luciano de Castro, numa escrita simples e ao mesmo tempo tão sofisticada, por falar de maneira tão sensível das belezas do cotidiano nos encantos das terras das Minas Gerais. Fez-me lembrar, com muita nostalgia, da canção “Ponta de areia”, de mais um mineiro genial. Gratidão pelo texto encantador, Luciano de Castro!
Prezado Márcio. Baianos e mineiros são galhos de um mesmo tronco, afluentes de um mesmo rio. Obrigado pelo carinho.
Linda essa crônica!! Mãe de três filhos como sou, muitas ,também , foram as batalhas vencidas pra criar meus filhos , mesmo com o todo o apoio do pai ! Ver o Luciano falar de sua mãe com tanto carinho, expressando sentimento de gratidão é emocionante !
É o mínimo que eu posso fazer, Roseliane. Obrigado pelo comentário.
Caro Luciano, gostei muito de seu texto. Você, assim como Viriato Correa, fazendo literatura para dar sentido às experiências de vida e à participação fundamental de personagens imensuráveis como sua mãe e seu infinito amor pelos filhos. Parabéns!
Pois é, Carlos. Essa releitura foi como viajar de trem, visitar antigas estações e despertar sensações já esquecidas. Bom ter você como companheiro de viagem.
Luciano, que delícia ler essa crônica, fez minha imaginação viajar com sua história nos morros de Minas Gerais!!! Parabéns!!!
Obrigado, Eneida. Minas é logo ali. Basta cruzar o Paranaíba. Que bom que você viajou pra lá sem sair de Goiás. Abraço!
Não sou daqueles que costumam pensar que tudo no passado foi melhor. Porém, esse tipo de história aos poucos me levou a pensar que sim, aquela infância simples que tivemos aqueles que agora estão na casa dos 50 anos foi melhor. E Luciano tem muito a ver com essa convicção, já que suas crônicas nos remetem a uma época que, felizmente, vem à mente de vez em quando. Muito justa, também, aquela homenagem à mãe. Obrigado mais uma vez, Luciano.
Gracias, Jaime. Tu portugués está perfecto. Un cordial saludo!
Achei o texto bem leve e gostei muito da maneira fácil e agradável como os diferentes aspectos do texto são entremeados na sua apresentação, isso é os dois Cazuzas, os tempos idos da infância do Viriato Correa e do autor, a explicação das sequências do numero 7 e a emoção quando fala da mãe. Esse é um aspecto que muito me toca, pois nunca tive uma boa relação com a minha mãe: ela dos cinco filhos, ela só “via” o filho temporão, as quatro filhas que antecederam o herdeiro eram “inexistentes”
Agradeço ao gentil comentário, Blanche. De fato, as relações humanas são complexas e geram boas histórias. Um abraço!
Sua narrativa foi tão bem construída que quando me dei conta, já estava no final da crônica e desejando continuar a leitura.🙏🏽😊
Parabéns! 🍀