Clube dos Escritores 50+ Luciano de Castro Olhos verdes png

Os olhos verdes de Copacabana,
crônica de Luciano de Castro
finalista do concurso Ruth Guimarães, da UBE

Que os cronistas vivem experiências surreais, isso é certo. Alguns as revelam, outros as escondem. Numa crônica de 1934, Humberto de Campos relatou a espirituosa conversa que tivera com um cãozinho vadio no Largo do Machado. Bem antes disso – no longínquo 1892 — Machado não conversou, mas entendeu perfeitamente a linguagem dos burros que puxavam o bonde em que viajava. Os dois muares especulavam sobre o destino que teriam com a chegada dos bondes elétricos. Isso mesmo, leitores: os beneditinos do cotidiano têm a faculdade de se comunicar com os bichos. É raro, mas acontece. Comigo, tal fenômeno se deu na quarta-feira passada, quando fui visitar o Orestes, um velho amigo que mora no Bairro Peixoto.

Por volta das 5 da tarde, o Dr. Orestes foi chamado pra ver um doente, e eu fiquei sozinho tomando conta da casa, do gato amarelo e da própria rua. Não fossem duas ou três crianças que brincavam no parquinho, a Praça Edmundo Bittencourt estaria completamente deserta. Desci do apartamento, sentei-me num banco de madeira e fiquei ali contemplando a vida lenta das árvores e de alguns seres semoventes. Aquela quase yoga foi violentamente interrompida pela famigerada Kombi do ferro-velho que irrompeu do outro lado, proclamando o seu repisado script: “É o carro do ferro-velho, o moço tá passando e tá comprando. Tudo que for material velho, panela velha, geladeira velha, freezer velho, ar condicionado velho…”

– Quanta velharia se vende nesta cidade?! – pensei em voz alta.

Nem queira você saber, inclusive a humana respondeu-me uma voz anasalada.

— Quem dissera aquilo? Eu estava só naquele lado da praça. Ninguém nos outros bancos, nem na calçada, nem na rua. O ser mais próximo a mim era um pombo cinzento, que se encontrava sobre a placa do Artur Xexéo, à minha esquerda. E acreditem: era ele, o pombo, meu interlocutor. O bicho fez um voo rápido. pousou no banco em que eu estava e continuou:

Pois é… eu conheço uma história cabeluda sobre esse ferro-velho. Não gosto de ficar espalhando isso por aí, mas vi que você é confiável, além de compreender a minha língua.

— Fiquei petrificado olhando praquele pombo falante, que logo me advertiu:

— Você parece um morto-vivo. Quédate tranquilo! Pare de olhar pra mim, olhe pra frente. Aja com naturalidade, como se eu não estivesse aqui entendeu? Take to easy man.

Segui as instruções do columbideo: fui me acalmando, absorvendo a novidade e, em poucos minutos, já conversávamos como colegas de repartição. Na verdade, ele era quem mais falava, correto, com desenvoltura, quase sem solecismos. Contou-me do casal de idosos-o coronel e a professora-seus conhecidos de longa data, moradores da Rua Bolívar:

Eu era muito afeiçoado à dona Marluce. Nunca encontrei pessoa tão amável. E olha que conheço cada palmo – terrestre e aéreo – desta zona sul. Você sabe que existe um ódio generalizado contra nós, pombos europeus. Dona Marluce era diferente: colocava-me água no parapeito, até ração especial aquela santa comprava pra mim. O marido não, era um escroto que a tratava muito mal. Já tive impetos de meter-lhe o bico. Fiquei muito triste com o fim dela.

E o que aconteceu?-inquiri curioso.

— O energúmeno simplesmente a vendeu pro ferro-velho; e por meia pataca, segundo as minhas fontes. Os caras a sequestraram, puseram na Kombi e levaram prum bunker no Morro do Cantagalo. Lá a assassinaram e desmontaram as partes. Eu vi tudo. Quanta crueldade! Você disse que desmontaram as partes. Como fazem isso?

Não conheço a metodologia, os detalhes técnicos, a engenharia fina, mas suspeito que utilizem a inteligência artificial e talvez até tecnologia alienígena. Na verdade, existem vários compradores de ferro-velho. A maioria deles está interessada em metais para reciclagem: ferro, alumínio, cobre, chumbo. Só que, no meio desses comuns, existe uma facção especializada que só trabalha com material biológico vital: células, tecidos, órgãos. sistemas. O bunker deles é um grande laboratório para reprocessamento e construção de réplicas humanas.

–Imagino que da sua protetora não devem ter aproveitado muita coisa, pois ela já era uma senhora mais velha e, certamente, com peças bem deterioradas.

— Nisso você se engana, meu amigo. Os engenheiros também se surpreenderam com o tanto de material nobre que puderam retirar da dona Marluce. Alguns itens estavam, de fato, desgastados pelo tempo: a pele encarquilhada, os seios murchos, os joelhos com artrose. Outros, porém, estavam em ótimo estado. Na face, por exemplo, encontraram um nariz muito bem feito e dois olhos de um verde profundo belíssimo. Surpresa maior encontraram ao lhe dissecar o encéfalo: cada componente mais valioso que o outro. Acharam o gérmen do amor, paciência, cumplicidade, um senso de humor novinho em folha e um adorável sotaque mineiro.

— E o que fazem com todo esse material? perguntei.

Montam outras mulheres, ora essa! Ou vendem a varejo pra outros laboratórios ao redor do mundo. Esses itens comportamentais saem a peso de ouro. Muito mais que os físicos.

E o coronel? Teve notícias dele?

— Eu soube en passant que o canalha se amancebou com a diarista, uma cabrocha de 21 anos. Parece que ela se mudou pro apartamento dele. Um companheiro me disse que costuma vê-la nos ensaios da escola, pisando nos astros, distraída, e que o velho nunca está por perto.

Nesse momento, soaram duas buzinadas longas e uma curta. Era o Orestes, que retornava do hospital e estacionava o carro ao lado da praça. O tríplice sinal sonoro – um código nosso desde os tempos da faculdade – significava que a missão havia sido concluída com sucesso.

–Era uma cólica renal, mas já está controlada – proferiu triunfante o bom Orestes.

O pombo, que se assustara com a buzina, voou pro prédio vizinho. De lá, desapareceu nos céus sem dizer adeus e — o que é pior — sem terminar de me contar a história. O bimbalhar dos sinos convidava os fiéis pra missa das seis. Nós, infiéis, nos dirigimos a outro templo, o Pavão Azul, onde encerramos a noite entre chopes, pataniscas e mentiras sinceras. Na mesa ao lado, havia uma morena vistosa de olhos profundamente verdes. Seriam os da dona Marluce?

Essa crônica, finalista do concurso Ruth Guimarães de Crônicas da UBE, foi publicada originalmente no Diário do Rio

9 comentários

  1. Meu Amigo Luciano de Castro, recebi seu livro das mãos de Adriano Loyola amigo em comum. E agora acabo de ler sua crônica ” Os olhos verdes de Copacabana “. Gostei muito. Suas cronicas é de grande sensibilidade e de um humor que faz a gente meditar sobre verdades absolutas. Continue escrevendo seus finos biscoitos, como diria Fernando Sabino. Breve chegará em suas mãos alguns escritos meus. Um abraço!

  2. Meu querido amigo, sempre de parabéns nos seus escritos. Belíssima crônica, que nos faz transitar em pensamentos que vagueiam entre a realidade e o imaginário. Assim é Luciano, um cronista que brinca com as palavras e delas abstrai as mais sinceras confissões!

  3. Que crônica magnífica! Boa captura da essência do Rio de Janeiro. É um texto cheio de poesia e beleza, que nos lembra da grandeza do Rio e da mulher que o habita. Até senti saudades de passear por Copacabana.

  4. Caro Luciano sou um ancião chegando aos 90 anos, numa tarde monótona, chata, totalmente sem assunto. Tua crônica maravilhosa, bem-humorada, inventiva, criativa etc etc deu uma dose de bom humor a essa velha criatura. Espero que o carro do ferro-velho não passe por aqui perto. Chamaria teu texto de engenharia criativa de primeira. Um abraço parabéns

  5. Caro Luciano, ainda não li inteiro o livro em que convivem nossas crônicas. Mas a sua, que agora releio, já havia lido. No dia do evento de lançamento, folheando meu exemplar, me chamou a atenção pelo estilo, pelo vocabulário, pelo humor. Adorei. Não apenas pela citação, mas por tudo quanto enumerei (e mais), me lembrou Machado de Assis. Acho que não preciso escrever mais nada. Abraço!

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