O Projeto Rondon nos tinha escalado, quatro colegas e eu para irmos ao alto Vale do Ribeira trabalhar no povoado da Barra do Nhembú por um período de dois meses. Havia no grupo, um médico e um veterinário últimanistas, uma pedagoga, uma psicóloga e eu, geógrafa. O médico e o veterinário iam atender pessoas e animais necessitados e as meninas aplicariam um questionário para avaliar as condições de vida da população.
Tivemos muitos problemas para chegar ao nosso destino: havia chovido muito e a estrada de terra estava em péssimo estado. Quando chegamos, perto da sede da Barra do Nhembú, destacava-se na mata uma árvore alta com tronco grosso, um pouco isolada das demais que tinha sido atingida por um raio. Erguia-se poderosa, enegrecida pelo fogo, decapitada e desprovida de folhas. O nosso motorista aos risos nos explicou que a árvore era conhecida como o “pau do Soares” em homenagem ao prefeito da cidade. O próprio nos recebeu com muita hospitalidade. Homem de traços fortes, cinquentão charmoso e muito carismático, era considerado o “garanhão” da Barra do Nhembú e essa apelação era plenamente justificada: ele era o pai de dois times de futebol de filhos homens (sim, ele tinha 22 filhos homens!) e de meia dúzia de filhas. Todos os rebentos tinham sido paridos por duas mulheres sendo uma delas a sua filha mais bonita – que ele convertera convenientemente em amante. Fomos bem acomodados nas dependências de uma escola. Soares veio nos convidar a todos para um delicioso jantar de boas vindas à base de porco com sálvia e tamarutacas (lagostas de água doce) e não resistiu em arrastar uma asa pelas meninas do grupo.
Tínhamos um chefe de turma, o Gabriel, um rapaz sério, com muita liderança e experiência na região que determinava as tarefas e escolhia os executores. Assim, fui escalada para assessorar no dia seguinte Ronnie, o médico do grupo que ia fazer uma apresentação às mulheres do lugarejo sobre contracepção e entregar-lhes cartelas de anticoncepcionais.
Ronnie falava, falava e eu não imaginava como aquela linguagem difícil ia ser entendida pelas mulheres simples do povoado. Olhei sorrateiramente para elas: acompanhavam perplexas e envergonhadas o discurso do meu colega que não pareciam entender, cochichavam entre si e trocavam olhares inquietos. Na verdade, como uma delas tão bem definira a questão mais tarde, não conseguiam entender como um simples comprimido ingerido num extremo do corpo podia ter efeitos tão benéficos no outro …
Distribuímos as cartelas de comprimidos anticoncepcionais e explicamos às mulheres como tomá-los. Avisei-as que estaria a sua disposição para sanar as dúvidas que poderiam ter. Cerca de um mês depois, um grupo grande de mulheres veio me ver e pude constatar que muitas delas estavam usando o método corretamente. Mas a Mari, a Cidinha e a Rosa me deixaram sem voz: Mari, me informou que durante os quinze primeiros dias do mês passado, fora seu marido que ingerira o comprimido e nos quinze últimos dias, fora sua vez de tomar o anticoncepcional uma vez por dia, sempre na mesma hora, como tinha indicado o médico. Assim, a segurança para não engravidar era maior já que ambos os parceiros se tinham protegido com a ingestão do anticoncepcional …
A Cidinha já pensava de maneira diferente em vista de sua preocupação em fazer economias. Como não havia cartelas de anticoncepcionais disponíveis na Barra do Nhembú, ela economizava ao máximo os comprimidos e toda noite só tomava a metade de um. Rosa, do seu lado, tinha achado uma maneira original de evitar uma gravidez indesejada: simplesmente colocava toda noite um comprimido debaixo do seu travesseiro, passava a noite dormindo em cima dele e descartava-o de manhã. À noite, voltava a colocar um comprimido debaixo do travesseiro e assim por diante. Pacientemente, expliquei de novo a estas três mulheres como deviam tomar a medicação.
“Ah bom, agora está explicado o provável motivo da queda de cabelo do meu marido Arnaldo”, riu Mari. “Isso começou há pouco tempo. Pelo que a senhora acaba de falar, isso é remédio só de mulher. Não presta para homem.” Quanto à Cidinha e a Rosa, elas tinham tido muita sorte: não tinham engravidado e passaram a partir deste dia a se proteger da maneira certa.
Divertidíssima sua crônica. Conheço outra versão: a moça passou a colocar o comprimido ENTRE os joelhos. Mantendo-os sempre colados um ao outro jamais engravidou….
A imaginação humana e fértil. Deve ter outras maneiras originais de lidar com o problema … e até as vezes, por razões que desconhecemos, a mulherada não engravida.
Delícia de história e lição de comunicação e empatia.
Confesso que ri muito nos meus projetos Rondon com os comportamentos do pessoal … Mas havia tanta gentileza e tanta espontaneidade que sempre tentávamos fazer o máximo para ajudar
Blanche,
Essas experiências são sempre muito boas. Nao sao todos que.conseguem te-las. Eu, como você, tive várias trabalhando nas comunidades ribeirinhas do Rio Negro
Abraco
São experiências muito enriquecedoras e, se não tive a oportunidade de trabalhar na região do rio Negro, trabalhei em vários outros lugares além do nordeste. Aliás quando falo do nordeste lembro com arrepios daquela monstruosidade culinária que nos era oferecida como a carne de vento de bode. Mas em troca,tinha uma grande vantagem: perdi 11kgs num mês Mas até hoje estou brigada com caprinos no prato!