Clube dos Escritores 50+Adolfo Leirner Ambulância

A ambulância, conto de Adolfo Leirner


Sou Daniel. Médico socorrista. Médico de urgências. De vidas penduradas no fio invisível do tempo.
Hoje é meu plantão na ambulância. E o céu de São Paulo parece anunciar que também não terá um plantão fácil. Cinzento, zangado. O trânsito na ponte Cidade Jardim não anda. O horizonte guarda um sol trêmulo, lutando para não se afogar na tempestade que se aproxima.

O rádio da ambulância chiando. O limpador de para-brisa em ritmo de metronomo cardíaco. As buzinas, indiferentes, compondo aquela sinfonia caótica que todo socorrista conhece.

Chego ao pronto-socorro do Einstein. Piso no chão frio do vestiário, visto o pijama verde, penduro no pescoço aquele velho companheiro: o estetoscópio. Encho um copo plástico com café morno. Na mesa, uma revista velha. Manchetes de tragédia. Deixo-a cair de volta. Não vim aqui para ver desgraça impressa. Vim para enfrentá-la.

O intercomunicador rompe o silêncio:
— Dr. Daniel, chamado! Dr. Daniel, chamado!

Respiro fundo. E lá vamos nós.

Na garagem, Elias já me espera ao volante. Motorista ágil, nervoso, desses que pilotam ambulância como quem pilota a própria alma. Paulão, o enfermeiro, é o oposto: robusto, sereno, quase zen. Um desses anjos de uniforme verde que seguram mãos, apertam bolsas de soro e, quando precisam, apertam também o coração da gente de volta à vida.

Conferimos juntos o arsenal silencioso da ambulância: desfibrilador, respirador, oxigênio, ampolas de adrenalina, morfina, kits de acesso venoso. Tudo no lugar. Tudo como deve ser, porque quando o tempo é o inimigo, a única arma que temos é a precisão.

Leio a anotação na prancheta:
Paciente feminina. Dor abdominal intensa há horas. Incapaz de ficar em pé. Chamado urgente. Rua Abdalla, 208, próximo ao Ceasa. Tempo de chegada: indefinido. Chuva forte. Trânsito caótico.

Subo. A sirene começa a rasgar o ar da cidade. Mas São Paulo não se dobra fácil. Nem ao som da emergência, nem ao som do desespero. O trânsito se move como quem não ouve, como quem não vê.

A chuva desaba. O limpador trabalha frenético. Água nas rodas, água nas portas, água até na nossa esperança. Elias consulta o Guia Quatro Rodas iluminado pela lanterna. Não há Waze que nos salve. Depois de alguns desvios, achamos a rua.

O portão está aberto. Entramos. E, como mágica, o som da chuva cessa. Um silêncio pesado, carregado, toma conta.

Na sala, um homem magro, de camiseta, jeans e chinelos havaianas, esfrega as mãos. Nervoso. O cabelo, desalinhado, escorre sobre os olhos.

— Boa noite. Sou Dr. Daniel, do Einstein.
— Adão, doutor. Eu… eu que chamei.
— Sua esposa?
— É… a Noêmia… tá lá no quarto.

Nos guia até um cômodo simples, modesto, de dignidade tocante. Uma vela tremula diante de uma imagem de Nossa Senhora.

— Acende a luz, por favor.

Noêmia está ali. Deitada. Muito pálida. Suando frio. O olhar não é de dor. É de quem já está se afastando. E quem já viu isso sabe reconhecer: o olhar de quem sente que pode não dar tempo.

— Noêmia, sou o Dr. Daniel. Me diz, o que você sente?
— Dói… aqui… muito… parece que minha barriga tá dura… e eu não posso… nem me mexer… nem respirar direito.

Palpo o abdômen. Duro como madeira. Dor intensa. O pulso dispara: 120. Paulão já mede a pressão: 100.

— Ajuda ela a sentar, Adão.

Ela mal se ergue. Fica pálida como cera. A pressão despenca: 40. Pulso em 140.

O tempo agora é uma bomba.

— Paulão, acesso calibroso, braço esquerdo. Albumina 500 ml, pra correr em 30 minutos. Olho na pressão, sem perder.

Paulão já perfura, já conecta, já ajusta. Elias corre pra preparar a saída.

Viro-me pro marido:
— Adão, documentos, convênio, o que tiver. Ela precisa ir pro hospital. Agora.

Corremos. Adão sobe ao lado de Elias. A chuva não para. A sirene volta a gritar, mas gritar não adianta contra a força de um rio. A marginal virou um. A água cobre pneus, invade os escapamentos, transforma ruas em armadilhas invisíveis.

De repente, antes que qualquer um pudesse reagir, Adão abre a porta, salta na água, e segue na frente da ambulância. Atravessa a correnteza, pisa onde não se vê chão, estende os braços, sinaliza para Elias. Vira guia. Vira farol humano. Vira ponte.

Paulão olha pela janela.
— Esse cara é maluco… ou um herói.

Sigo monitorando Noêmia. Pulso ainda disparado. Pressão baixa. Cada segundo é um milímetro a mais no sangue que se perde. Cada solavanco da ambulância é um sopro a menos na resistência dela.

Adão não para. Vai na frente, afunda até os joelhos, depois até as coxas. Mas segue. E a ambulância segue atrás. Porque quem ama, abre caminho até no meio do fim do mundo.

Finalmente, a água começa a baixar. Voltamos a rodar. Sirene ligada. Luzes piscando. Grito no rádio:
— Pronto-socorro, aqui é Dr. Daniel na unidade móvel. Chegando com paciente grave, provável abdômen agudo hemorrágico. Acionem centro cirúrgico, banco de sangue, equipe completa. Agora!

— Recebido, doutor. Cirurgião a caminho. Sala preparada.

Chegamos. As portas se abrem. Maca, enfermeiros, técnicos, todos em movimento preciso, quase uma coreografia que a vida ensina.

Noêmia sobe direto para o centro cirúrgico. Eu vou junto. A adrenalina impede qualquer pensamento que não seja salvar.

Dr. Rosenberg já espera. Baixinho, calmo, experiente. Sobre um banquinho para ganhar altura, faz a incisão. Sangue jorra. Aspira. Luz. Mais luz.

— Cisto ovariano roto! — anuncia, como quem aponta o inimigo.

Pinça, compressa, bisturi, mais compressa. Controle do sangramento. Correção. Sutura. Silêncio. Respiração retomada.

Uma hora depois, Noêmia desperta. Confusa. Viva.

Saio. Adão me espera na sala. Agora, de roupa seca, emprestada do hospital. Está em pé, mãos juntas, olhos marejados. Antes que ele diga qualquer coisa, levanto o polegar.

Ele sorri. Sorri como quem renasce. Nos abraçamos, forte, apertado. E, sem pedir, sem saber como, nos permitimos chorar.

Adão nos ensinou algo que nenhuma escola de medicina jamais ensinaria: que quando o amor corre na frente… nem a morte tem coragem de seguir atrás.

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