Até que chega o mês de agosto, mês da queimada. Acero para o fogo não passar para as fazendas vizinhas, pessoal saindo para todos os lados da fazenda, todos prontos cercando a área seca e, a um sinal, tacar fogo! De longe, bebê no colo, vejo tudo parada no vão da porta da cozinha.
Continuar lendoRelato de um corvo, por Eder Quintão
Um amigo meu, professor de biologia, me assegura que entende tudo da
língua dos pássaros, como por exemplo a dos corvos, animais muito
inteligentes e loquazes. Assumo que tenha me contado a verdade pois é um
bom cientista e ateu, e não acredita em disco voador de outro planeta. Contou
que ouviu essa conversa de um corvo da floresta com um corvo conterrâneo
que nunca saíra dela, mas que desejava muito conhecer como vivem os seres
bípedes nas cidades
Afogado, pequeno conto de Tita Ancona Lopez
Lá se ia o tempo do afogar-se em sentimentos que, de tão fortes, o levavam ao fundo, enquanto se debatia, procurando emergir, sem êxito. Então, afogava-se e novamente se afogava, até que fugia de qualquer coisa que sentisse, só para que não lhe trouxesse o afogamento, a falta de ar.
Já lá ia o tempo pensou, satisfeito.
Que bom que já lá ia.
Bahia, por Carlos de Castro
Um sacolejo forte desmanchou o devaneio. Trechos esburacados da estrada tornaram a viagem mais lenta e sacolejante até o desembarque, horas depois. Na noite quente da Bahia, três jovens mineiros, mochilas nas costas. Uma rápida exploração do entorno, um lanche na padaria – regado a muita cerveja – e se instalaram numa pousada próxima à rodoviária. O dia seguinte era dois de fevereiro: festa de Iemanjá. Téo não fazia ideia do que o esperava.
Continuar lendoSONHO DE SOLIDÃO, por Bettina Lenci
Sente um ardor no sexo e o arrepio lhe toma o corpo, a boca seca e o coração acelerado. Sabe da dor da ausência que teria que superar, mas até hoje não dominara. Ao contrário parecia que se densificava a cada acordar do cochilo no jardim do asilo.
Continuar lendoMoça branca da cidade, por ELISABETH FERRONI, nossa autora convidada
Wekanã tenta mergulhar a cabeça, limitado pelas boias de braço que coloco todas as manhãs, receosa de que meu filho se afogue em mar sem ondas. O esforço vale a pena pelo sorriso que me devolve. Pele morena avermelhada, olhos grandes pretos, cabelo preto liso, franja curta. Corte tipo tigela, era como eu e minhas colegas de faculdade costumávamos chamar aquelas cabeças indígenas na primeira vez que cheguei por aqui.
Continuar lendoA VISITANTE, conto de Zulmara Salvador
– Uai. Todo mundo tem meio medo da gente, da minha cara sem dentes, do cachorro sarnento.
– Ele morde?
– Não. O coitado nem tem mais dente. Que nem eu.
– Pena. Cachorro sem dente sofre mais que gente. Mais que gente sem dente.
– Aí a senhora falô coisa certa, viu? Eu me viro. Ele fica lambendo os osso que o Freire dá, num desespero.
O QUE EU TENHO PERDIDO?
perplexidades de Zulmara Salvador
Mas que título horrível! Só porque a pessoa fez sessenta anos, acha que pode se permitir falar de perdas? E as folhas que caem a cada inverno? Na primavera tenras, no outono amarelas? Caem no inverno…E aqueles répteis que duram um dia só: nascem, comem, acasalam e morrem? E as borboletas?
Continuar lendoO alimento dos Ogros, crônica fantástica
de Liliana Wahba
Um promotor de Vitória, Espírito Santo, aconselha a mulher a ‘segurar o facho’ e voltar com o marido que a agride violentamente, acusado de tentativa de feminicídio. Alega que é necessário manter a união da família para proteger os cinco filhos do casal.
Continuar lendoMudança, por Tita Ancona Lopez
Peguei a escova de dentes, mas deixei o vidro de shampoo e o sabonete líquido.
Propositalmente esqueci-me de um pé daquela meia branca com o desenho da Nike em azul.
Levei as roupas, mas deixei uma bolsa.
Os sapatos, levei todos.
Peguei meus papeis, minha caixa de recordações e os livros, porém, deixei dois, com frases marcadas e observações escritas a lápis, em muitas páginas.
TA-TU-RA-NA,
por Tita Ancona Lopez
Era uma taturana verde claro, movendo-se lentamente sobre uma folha verde escuro. A folhagem forrava um muro bem mais alto do que ela mas, a taturana, estava na altura dos olhos. Sabia que não podia encostar o dedo, a avó dizia que taturana queima, tinha tanta vontade de pegar! Passou horas olhando o movimento do corpo comprido, devia cansar aquele mover-se com tantas perninhas, ela só tinha duas e não andava deitada, andava de pé.
Continuar lendoEstando eu posta em sossego…
por Silvia Ancona Lopez
Senhora,
Confesso ter estranhado muito a sua mensagem. De início, pensei em não responder, pois não lhe devo nenhuma satisfação e não vejo motivo para lhe falar de minha vida pessoal, muito menos de minha vida amorosa. No entanto, tenho uma característica – ou, talvez, seja um defeito – gosto de deixar as coisas claras. Não suporto mal-entendidos ou que permaneça apenas a visão unilateral de um fato. Segue, pois, o que se passou.