Clube dos Escritores 50+ Silvia Ancona Lopez Senhora

Estando eu posta em sossego…
por Silvia Ancona Lopez

Senhora,

Confesso ter estranhado muito a sua mensagem. De início, pensei em não responder, pois não lhe devo nenhuma satisfação e não vejo motivo para lhe falar de minha vida pessoal, muito menos de minha vida amorosa. No entanto, tenho uma característica – ou, talvez, seja um defeito – gosto de deixar as coisas claras. Não suporto mal-entendidos ou que permaneça apenas a visão unilateral de um fato. Segue, pois, o que se passou.

Na mais plena adolescência, Arthur e eu nos conhecemos e nos apaixonamos. Foi um amor cheio de frescor, de alegria, de muitas risadas, de calores, arrepios, taquicardias e beijos desesperados. Naquele tempo, começava-se tudo muito devagar: a emoção do primeiro encontro das mãos, os ensaios para o primeiro beijo, que depois era seguido de outros, longos e intermináveis, que deixavam nossos lábios inchados. O desejo traspassado pelo medo e pelas dúvidas: “e se ele tocar em meus seios?”, “e se ele quiser fazer amor comigo…?” pois então o verbo “transar” não existia e a iniciativa era sempre do homem. Mas, estou me perdendo nas lembranças que, ao lhe escrever, voltaram com tanta força! Eu poderia passar dias contando detalhes e relembrando minúcias deliciosas, repleta de saudades… 

Ele era um rapaz cheio de atrativos: alto, mais charmoso que bonito, inteligente, e eu me sentia orgulhosíssima ao seu lado… não vem ao caso. Não me lembro porque, mas nosso namoro terminou. Nunca mais vi Arthur e não soube mais dele. No decorrer da vida tive outros amores, algumas aventuras, muitos desacertos. Um casamento rápido me mostrou que a vida a dois era muito mais difícil do que eu imaginava nos meus devaneios, e tive a certeza que seria muito melhor viver sozinha. Deixei-me envelhecer com tranqüilidade, sem mais desejos nem anseios, certa de que a minha maior felicidade sempre estaria nas inúmeras viagens que fiz e que ainda pretendo fazer.

Eis que, estando eu posta em sossego, toca uma tarde o telefone e Arthur surge do passado, inesperadamente, sem motivo ou razão suficiente, amolecendo minhas pernas, disparando meu coração, como se não se tivessem passados mais de quarenta anos! Aquela voz forte e as palavras com que ele reentrou em minha vida, palavras que pensava que nunca mais ouviria, me preencheram de tal forma que me senti acalentada, embalada e com a sensação de que eu, finalmente, havia chegado a Ítaca. Ele disse que queria me ver, que se lembrava com saudades do nosso namoro adolescente, que eu havia deixado uma marca em sua vida, que…enfim!

Enchi minha casa de flores, procurei no armário algo que me lembrasse que eu ainda era mulher, escolhi os brincos com cuidado, passei o batom mais vermelho que encontrei na gaveta do banheiro e… suprema ousadia, pintei levemente os olhos. Quando a campainha tocou, achei que não conseguiria chegar até a porta. Mas, ao abri-la, o que vi não foi um senhor maduro, bem conservado, seguro de si, de bigodes e cabelos grisalhos, segurando um ramo de flores. O que vi foi aquele menino um pouco desajeitado e tímido que eu amava tanto!

Conversamos a tarde toda como se não houvesse aquele imenso hiato entre nossos encontros. Arthur contou um pouco da sua vida: disse que fora casado por 26 anos, que tinha dois filhos, que estava se preparando para ser avô, que morava em Curitiba e que sempre que possível viria para São Paulo encontrar-me, pois não queria mais me perder. De minha parte, toda a cautela que eu acumulara durante a vida, todas as desilusões que sofrera e que me ensinaram a ouvir com reservas elogios e promessas, desabaram como os muros do Templo sob as trombetas de Jericó. E esta imagem me veio porque eu me sentia transportada ao tempo em que o conheci, quando estudava História Sagrada em um colégio de freiras. Como é curioso o tempo! Viaja-se nele sem precisar das máquinas imaginadas pela ficção científica! Ali, ao lado de Arthur, eu me sentia menina e senhora, vivendo o passado, o presente e o futuro, concomitantemente. Via-me esperando por ele no próximo encontro, comprando a bebida que ele gostaria de tomar, acendendo velas; via-me, ainda adolescente, abraçada a ele aos beijos, no sofá de veludo verde da casa de minha mãe, e via-me em minha casa, olhando-o com muita atenção, querendo rir e chorar e procurando gravar cada ruga sua, cada expressão, cada sorriso, com medo de perder o que estava vivendo!

Foi quando a senhora invadiu a minha vida pela primeira vez, assim como a está invadindo agora. Não sei por quê! Não sei por quê! Não sei por que ele me contou da sua existência. Há 23 anos vocês mantêm uma ligação. Estando ele casado ou solteiro vocês mantêm uma ligação! Por Deus, senhora! Quem a autoriza a vir agora tomar satisfações?!! Por que se arvora de matriz, como diz o samba, se sempre foi filial?

Quando soube de sua existência esfriei, ou melhor, congelei! Não pela senhora, que não lhe devo nada, mas por mim. Lembrei-me de outros homens comprometidos que passaram pela minha vida e não me senti disposta a criar subterfúgios, ligar em horas determinadas, não freqüentar certos restaurantes, passar o reveillon sozinha. Nenhum homem merece ser disputado! É humilhante, é degradante! Foi isso que disse a ele, que ignorou solenemente minhas palavras e continuou sua cena de sedução. Sentindo-me resistente, ao sair, lançou a frase: “Ainda vou te jogar em uma cama.”

Na despedida, deixei que me beijasse, mas, assim que saiu, engavetei meus sonhos, minhas fantasias, meu passado e meu futuro. Apaguei aquele brilho novo que surgira em meus olhos, tirei a maquiagem, vesti meu pijama de listras lilases e passei a noite procurando a paz perdida. Chorei, chorei e chorei, sentindo-me pequena, abandonada, magoada.

Ele não tinha esse direito! Não tinha o direito de enviar-me e-mails no dia seguinte e nos outros que se seguiram. Não tinha direito de mandar-me flores, voltar, insistir e quebrar minha resistência. Não tinha o direito de ser fraco e fugir como um covarde quando suas mensagens foram interceptadas. Ele não tinha o direito de me telefonar assustado e dizer com voz falsamente firme que não mais me veria.

Fui usada para alimentar uma relação doentia que precisa de uma terceira pessoa para poder subsistir. Que espécie de perversão é essa? Ele é um menino que faz travessuras e espera que a mãe venha castigá-lo para que, choroso, possa pedir perdão? Este drama barato é o estopim para que vocês terminem em uma cena ardorosa de falsa paixão, para retomar em seguida de forma que se reacenda o calor perdido. E a senhora se presta a esse papel! Há 23 anos! Lamento sua sorte, senhora. Lamento o esfacelamento da lembrança de um rapaz alegre, inteligente e viril, agora substituído por um amedrontado senhor de meia idade para quem não basta um Viagra para ter sua potência de volta.

Ele não tinha o direito de roubar meu sossego e me deixar catando os cacos, enxugando as lágrimas, recolhendo as flores, jogando fora o vinho. Não se passarão mais quarenta anos, senhora, para que ele desapareça novamente da minha memória. Vou voltar ao trabalho, aos meus filmes, às minhas viagens, mas a senhora continuará vasculhando os bolsos, o extrato do cartão de crédito e o computador dele. Estremecerá quando perceber que ele anda meio distraído, com olhos sonhadores. A senhora não vai conseguir dormir quando ele demorar a chegar à noite, ficará andando pela casa nervosa, ligando para um celular que não responde.

Passados alguns anos novamente estarei posta em sossego, mas a senhora não, porque sabe que estas coisas acontecerão mais uma vez, e mais outra, e mais outra, e sabe, também, que as cenas de reconciliação terão cada vez menos sabor, cada vez menos ardor.

Volto a lamentar sua sorte, senhora, e não me importune mais.

Claudia

2 comentários

  1. Gostei muito do texto pois ele retrata com muita verdade uma situação complicada, Nenhum homem merece ser disputado. Por mais que doa, a melhor resposta ao meu ver e perdoar, se afastar e entrar no silêncio que cura, que ensina até que haja reconstrução que nos permita seguir em frente.

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