Clube dos Escritores 50+ Eunice Maciel Melhores amigas

MELHORES AMIGAS, por Eunice Maciel

Encontraram-se no velório da mais nova delas, ainda que apenas em meses, já que tinham estudado juntas. O clima não era o de tristeza característico dos enterros, mas, sim, de alívio. Afinal, Alice vinha definhando há anos consumida por aquele raio de doença que vai matando uma a uma as células dos músculos do corpo, e as amigas assistiam a tudo incrédulas e impotentes.

Lamentaram por fora comemorando por dentro quando Alice parou de ir às reuniões da primeira quarta-feira do mês.  Não era a mesma coisa botar o papo de oito décadas de convivência em dia com uma enfermeira participando do grupo e Alice comendo de colher ajudada pela intrusa e, dureza, sujando-se toda.

O velório era o the end daquele filme meio drama meio horror que elas tiveram que assistir e que escancarava o fato de que a primeira da turma se fora deixando a pergunta no ar: quem será a próxima?

Esticaram o enterro num restaurante em Botafogo antecipando a primeira quarta-feira do mês e, como sempre, botaram a conversa em dia. Impressionante o tanto de novidade que se arruma em trinta dias – nesse caso, em vinte e cinco. Falaram de tudo, menos da Alice, afinal, o assunto já estava mais do que esgotado. Chamava atenção das outras mesas aquelas cinco senhoras trajando preto e branco conversando na maior animação, e foi apenas durante a sobremesa que uma delas traduziu em palavras o pensamento de todas.

–  Como vai ser quando chegar a nossa hora?

Costumavam divergir sobre quase tudo e volta e meia brigavam – às vezes por semanas até o próximo encontro – mas o desejo de uma morte vapt-vupt, de preferência dormindo, era unanimidade entre elas. Não havia como discordarem. O pesadelo comum era morrer como a Alice, um pouco a cada dia, uma morte sofrida, escancarada, exibida.

A conversa avançou e passaram a discutir de que forma poderiam ajudar-se, umas às outras, melhores amigas da vida toda, a morrer com dignidade. O café chegou, pediram mais outro, e um licor – por que não? – já que não dava para interromper assunto tão importante. Pediram a conta para livrarem-se do garçom rondando a mesa querendo encerrar o turno do almoço, sem a menor intenção de irem embora. Só depois de nova rodada de café com biscoitinhos (que gerou a abertura de nova conta), consideraram o assunto encerrado.

Tinham chegado a uma decisão.

Se fosse diagnosticada uma doença grave – degenerativa ou um câncer terminal, apenas estas, outra decisão unânime – se reuniriam em caráter de urgência para deliberar a aplicação do plano concebido naquela mesa de almoço, entre uma colherada de mousse e uma garfada de torta de limão.

O plano consistia em acompanhar discretamente a evolução da doença nas reuniões de todo mês, e quando a enferma em questão não mais pudesse comparecer, atestado incontestável de que a situação tinha se tornado por demais grave, iriam todas visitá-la, no hospital ou onde estivesse, e abreviariam seu sofrimento. Nada de fins prolongados. Nada de drama, pena ou arrependimento.  O “como fazer” era o dever de casa de todas, e para isso existe internet. Nenhuma do grupo era grande usuária da rede, mas dar um Google todas sabiam. Ou quase todas. As mais espertas ajudariam as mais fraquinhas.

Cerca de um ano depois, Marilia ficou doente. Emagrecia a olhos vistos, e não era dieta. Atrasou enquanto pôde a ida ao médico, fingiu que nada estava acontecendo, chegou a simular um regime, e só quando não deu mais para esconder o fato, admitiu um “probleminha” no estômago.

– Probleminha ou problemão?

– Probleminha. Nada sério.

As amigas convocaram, sem comunicá-la, a reunião de emergência. O plano estava de pé? Sim, claro que estava, afinal, combinação entre amigas é mais forte que promessa.

Dever de casa feito um ano antes, tinham chegado à forma ideal de execução do plano, que consistia em juntar uns calmantes fortes e botar na água de beber da sofredora. Haviam descartado a lista das “dez melhores ervas para matar sem deixar rastro”, obtida na internet, por ser complicada demais. A primeira das ervas, a Hemlock, parecia bacana por proporcionar uma morte indolor, mas só era encontrada na Africa do Sul ou em alguns lugares da Europa. A segunda delas, Aconite, foi logo descartada pois uma morte por sufocamento não parecia muito altruísta. Havia também o Dimetril Mercúrio, a Tetrodotoxina, o Polôno, o Cianeto ou Arsênico, mas nenhuma das amigas tinha netos ou sobrinhos químicos, ou qualquer outra forma de acessar as drogas. Tudo muito complicado. Um coquetel de Lexotan, Frontal ou Prozac serviria ao propósito, e isso elas tinham como conseguir. Nenhuma admitia o uso, mas todas tinham a amiga do sobrinho da conhecida da vizinha que não dormia sem um deles.

Marilia participou da reunião seguinte, e da próxima, e da outra também, cada vez mais magrinha. Uma tarde, faltou. Ligaram para ela, que deu uma desculpa qualquer, aniversário da afilhada ou coisa que o valha. Trinta dias depois, comparecia ao encontro com uma acompanhante que a amparava enquanto andava, a ajudava a sentar-se e, também, a se levantar. Não deu explicações, como se não houvesse acompanhante presente e estivessem todas tendo uma alucinação coletiva, mas a alucinação era de carne e osso e não estava ali apenas para enfeitar o encontro, ainda que bem bonitinha.

Lancharam, Marilia só beliscou a comida. Conversaram sobre amenidades, deixaram alinhavada uma ida ao teatro para assistir a uma peça estrelada pelo Falabella, e quando se preparavam para ir embora, Marilia finalmente falou, pela primeira vez naquela tarde.

– Vocês se lembram daquela conversa que tivemos depois do enterro da Alice?

A amigas se entreolharam, um desconforto quase sólido pairando no ar. Ninguém respondeu.

– Lembram, não lembram?

Silêncio total. O momento era solene. Quem sabe viria a admissão da doença, alguma instrução importante, a forma como deveriam proceder?

Como ninguém respondia, Marilia levantou-se, sempre ajudada pela acompanhante bonitinha e, antes de sair pela porta, olhou firme para cada uma das amigas e falou em tom decidido:

– Como pudemos pensar em tamanha barbaridade??!!

5 comentários

  1. Eunice,

    Li seus contos. São intrigantes do começo ao fim. Suspense, quase filmes noir!
    Mas delicados nas palavras, quase poéticos como escrita na atmosfera e, muito próximos da vida como ela é.
    Lembrei das histórias que nao contei aos meus filhos. Tenho oitenta ano e o fim nao deixa
    de rondar e, por fim, casei três vez, tenho quatro filhos de 2 casamentos, duas viuvezes
    e uma separação. Nao tive como deixar de cuidar dos meus filhos que cedo viraram órfãos, mas sem
    duvida imagino os pais de domingo marcado, pensando na nova namorada nos dias marcados para levar filhos a pizzaria.
    O fato de seu personagem ter 8 deles, calca sobre pais que comumente deixam para as suas exs. cuidar dos seus
    e friso, seus filhos.
    Muito bom! Parabéns.

  2. Muito bom! Tinturas de Rubem Fonseca e Patrícia Mello, sem desqualificação do texto original, bem estruturado. Parabéns

  3. A questão de como vai ser a nossa morte me parece muito oportuna pois é um ponto de interrogação. Antigamente as famílias cuidavam de seus doentes que morriam em casa. Foi assim na minha família onde o amparo familiar tornava a morte mais fácil. Mas hoje, a situação é bem diferente: morre-se em hospitais, casas de repouso … morre-se entre estranhos.
    Adorei também o final da história
    : um desenlace impactante! Delícia de leitura …

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