Clube dos Escritores 50+ Carlos de Castro Bahia

Bahia, por Carlos de Castro

Belo Horizonte começava a ficar para trás. Grupos esparsos de casas perdiam-se no verde escuro predominante. Da janela do ônibus, Téo acompanhava o movimento. Reclinou a poltrona, entregou-se àquela sensação gostosa de início de viagem e começou a observar o céu, atraído pela luminosidade intensa. A bela manhã de verão prometia muito calor, talvez chuva forte no final da tarde.

O vestibular era passado. Apostilas, resumos, simulados, chega. Afinal, a matrícula na Universidade Federal já estava conquistada e as aulas só começariam em março. Foi uma grande ideia essa viagem a Salvador, sem dúvida. Viajava com o irmão e a namorada dele. Tudo o que queria era relaxar e curtir.

O ano inteiro de 79 consumido pelo cursinho. Festas, tirar um sarro com alguma menina, nada. Está certo, havia entrado na geologia, mas agora, em compensação, estava aqui, viajando ao lado de um velho estranho. E eles aí atrás, abraçadinhos…

Voltou-se à janela novamente: montanhas sobrepostas ao longe dormiam suaves, até que uma área de mineração indecente quebrou a harmonia, com cicatrizes fundas na terra. Mais próxima, a sinuosa estradinha de chão batido passou a correr esperta e transportou-o a um ponto alto onde reinava uma grande paineira, barriguda.

Sentiu vontade de ouvir música. Pegou seu walk-man e escolheu Habanera de Ravel. O solo de violoncelo fazia tudo flutuar. Fechou os olhos. Prestou atenção também ao acompanhamento do piano, ao entrelaçamento de frases dos dois instrumentos. Por ora bastava ouvir, mas que saudades de seu cello…

Um sacolejo forte desmanchou o devaneio. Trechos esburacados da estrada tornaram a viagem mais lenta e sacolejante até o desembarque, horas depois. Na noite quente da Bahia, três jovens mineiros, mochilas nas costas. Uma rápida exploração do entorno, um lanche na padaria – regado a muita cerveja – e se instalaram numa pousada próxima à rodoviária. O dia seguinte era dois de fevereiro: festa de Iemanjá. Téo não fazia ideia do que o esperava.

***

Hoje, mais de trinta anos depois, ele retorna a Salvador: participa do Congresso Brasileiro de Geologia. Pela manhã apresenta seu trabalho sobre ocorrências de diques de diabásio em escavações de tuneis. No meio da tarde, dá uma escapada para um passeio pela cidade que não mais reconhece. Novas avenidas, enxames de automóveis, enormes prédios e hotéis modernosos destoam das lembranças que guardara da Bahia. Inevitável voltar às recordações. Buscar entender o que talvez jamais compreenderia: o que aconteceu naquele dois de fevereiro?

 Toma o rumo da praia do Rio Vermelho – local tradicional da festa.

Começa a lembrar:

Estava sozinho e, de início, foi atraído pelos cheiros das comidas típicas: as pimentas, gengibre, o azeite de dendê que as baianas iam usando aqui e ali. Aromas que se combinavam no ar, orquestrados pela arte daquelas mulheres. 

Recorda-se ainda que, à medida que avançava por entre as barracas – a massa humana aumentando, berimbaus marcando a capoeira – começou a experimentar sabores desconhecidos. Acarajé com camarão seco, abará, caruru… Arriscou também umas pingas diferentes e exagerou na pimenta. É verdade, pediu socorro: cerveja rápido!

Foi aí que ela apareceu, não se sabe de onde. Apareceu brincando e o chamou para dançar, ir atrás da música que vinha da praça. Logo corriam juntos como duas crianças. Ela era doce, sorriso lindo. Cor de jambo, olhos verdes, verdes como nunca tinha visto. Flor no cabelo, pele macia, muito macia. Era quente – uma moleca – e usava blusa fina, decote generoso…

Passou a chamá-lo de meu rei e o levou para ver a dança das mães de santo, ao som mágico dos atabaques. Os barcos, em procissão, conduziam flores e presentes à Senhora Dona das Águas. Quando deu por si, Téo participava do transe coletivo. Perdeu a noção do tempo.

Foi escurecendo. Os dois caminharam pela praia. Entraram abraçados no mar: meu rei, beijos, risos, mergulhos. A certa altura voltaram para a areia. Deitaram-se – o mundo já não existia. Só tinha olhos para ela, para aquele corpo maravilhoso… Foi como se respirassem juntos o mesmo ar. Depois dormiram, ou melhor, Téo adormeceu apoiado em seu colo.

Acordou na noite alta. Cabeça pesada. Abriu os olhos para um céu saturado de estrelas. Que lugar era esse? Demorou um pouco para se localizar. Levou um choque quando percebeu: estava sozinho. Completamente sozinho. Ela o deixou, sumiu. Por que? Não sabia seu nome, endereço, nada, nada.

Foi a primeira vez que se apaixonou. Mas, diferente de paixões que vieram depois, aquela não se resolveu. Não acabou, não se transformou. Estava ali: cristalizada no peito, um ponto profundo de angústia. Engraçado, Téo conseguia interpretar a gênese de formações rochosas, analisar dobramentos, falhas, clivagens, intrusões. Mas era incapaz de entender as forças que transformaram profundamente seu íntimo.

E aqui está agora, a andar pela praia em busca de uma saída, um alívio. Teria bebido demais? Teriam sido visões ou uma percepção extra-sensorial? Delírios fora da realidade de um jovem apaixonado? Fora da realidade… E o que é real? Alguém sabe? 

Olhou para as pequenas ondas que acariciavam seus pés. Não conteve o choro. Pegou um punhado de areia: o inexorável desgaste das rochas, tal qual o inexorável desgaste de todos nós. Lançou-o ao mar:

– Fique com Deus, minha rainha.

4 comentários

  1. Prezado Carlos,
    Como bom mineiro , sou apaixonado pela Bahia de tantos feitiços e mistérios. Sua história acordou algumas agradáveis reminiscências. Obrigado por isso.
    Um forte abraço, meu rei!

  2. Seu texto acordou minhas lembranças de uma Bahia pefumada e sensual, cheia de falas, cantadas, fofocas baianas, tudo encantado.
    Delicia!

  3. Seu texto também acordou reminiscências do passado. Apaixonada , bastante próxima de seu relato,
    a Bahia faz isso com a gente. É a brisa, é o mar, é o carajé, o misticismo tudo convida mas… ao acordar,
    foi um sonho impossível. A Bahia, por seu sabores e perfumes, cor da pele, cores e alegria, nos remonta à
    realidade: o sentido da traição!

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