“Sempre tendera a encarar as coisas despreocupadamente, a acreditar no pior somente quando acontecia, a não se inquietar com o dia seguinte…”
Franz Kafka

“Sempre tendera a encarar as coisas despreocupadamente, a acreditar no pior somente quando acontecia, a não se inquietar com o dia seguinte…”
Franz Kafka
Lá estava, um a mais na procissão de dias, acocorada, cotovelos nos joelhos, mãos apoiando a cabeça, parecia corcova de cupinzeiro, imóvel, olhar fixo, onde? Nem a respiração preguiçosa lhe movia, tampouco o friozinho conseguia tirar dela alguns arrepios, manhãzinha bem cedo, somente ela e alguns quero-queros trocando passos pela beira do lago, encoberto por uma larga e rala cobertura, qual algodão doce.
Continuar lendoMe conta uma história de papai Noel? – pediu João à sua mãe. Catarina, percebendo a chance de ouvir uma boa história, veio sentar-se junto aos dois. Era noite, e a família encontrava-se num hotel-fazenda na região do Pantanal, onde passaria o Natal. Tinham tido um dia maravilhoso, ao ar livre, e as crianças estavam fascinadas pela paisagem diferente de tudo que conheciam. Viram, juntos, vários tipos de pássaros, se encantaram com as araras azuis, andaram a cavalo, e bateram os pés contra a madeira do deque na beira do pântano para fazer emergir cabeças de jacarés atraídos pela vibração produzida pelas batidas.
Continuar lendoTomaria seu café. Em pequenos goles, usufruiria do suco, alternando-o com mordidas na torrada coberta com geleia de amora. Leria o jornal, depois faria a lista dos presentes a serem providenciados para a noite de Natal. Eis que um dos seus dois filhos irrompe na sala, lhe dá um beijo de raspão e pergunta: Mãe, são dez horas. Você vai sair de pijama? Já estou indo. Beijo!
Continuar lendoNoite de Natal, indo para casa com um embrulho encobrindo um carrinho de corrida, deleite do pequeno que os colecionava. Divagava. Os sonhos de moça festeira se desembrulharam sem encanto, restando deles o osso desprovido de tutano. Somente o aceno de uma vida melhor para o filho ainda a sustentava.
Continuar lendoPassei a comprar carne todos os dias. O moço chamava-se Catarino, pobrezinho, que nome! Mas era lindo como um anjo. E anjo não era. Um dia ao abrir o embrulho em casa encontrei um bife de filé mignon. Pensei que fosse engano, mas não. O presente se repetiu. Nunca toquei no assunto.
Continuar lendoOito filhos. De quatro mulheres diferentes. Quem dos meus amigos tem oito filhos? Dos meus conhecidos? Conhecidos dos meus amigos? Nenhum. Nos dias de hoje
Continuar lendoEntrou apressado na garagem, chegou à porta do carro, enfiou a mão esquerda no
bolso da calça para retirar a chave, entre as chaves do escritório, a de casa e o abridor do portão automático, achou-a, pegou-a, ia retirá-la, algo a travou, percebeu que a mão não conseguia sair, achou que tinha engordado e a calça não dava mais conta de seu corpo da cintura para baixo.
A lâmpada acesa do corredor trazia seus braços até o aconchego da cama de Clarita dando-lhe a proteção diária de todas as noites. Temia o escuro e não dormia de outro jeito, de jeito nenhum, nem lhe oferecendo estórias, de Alice, da Caronchinha, de Saci, da Vaca Vitória, do Peter Pan, nem chocolate quente, televisão sobre a cômoda, um presentinho ou outro, bom de fato, ou sem fato, nada. Nada a demovia do temor de ficar sozinha no escuro da noite em seu quarto, mesmo protegida pelas cobertas ou seus pais, amigos, bichos de pelúcia.
Continuar lendoAté que chega o mês de agosto, mês da queimada. Acero para o fogo não passar para as fazendas vizinhas, pessoal saindo para todos os lados da fazenda, todos prontos cercando a área seca e, a um sinal, tacar fogo! De longe, bebê no colo, vejo tudo parada no vão da porta da cozinha.
Continuar lendoUm amigo meu, professor de biologia, me assegura que entende tudo da
língua dos pássaros, como por exemplo a dos corvos, animais muito
inteligentes e loquazes. Assumo que tenha me contado a verdade pois é um
bom cientista e ateu, e não acredita em disco voador de outro planeta. Contou
que ouviu essa conversa de um corvo da floresta com um corvo conterrâneo
que nunca saíra dela, mas que desejava muito conhecer como vivem os seres
bípedes nas cidades
Lá se ia o tempo do afogar-se em sentimentos que, de tão fortes, o levavam ao fundo, enquanto se debatia, procurando emergir, sem êxito. Então, afogava-se e novamente se afogava, até que fugia de qualquer coisa que sentisse, só para que não lhe trouxesse o afogamento, a falta de ar.
Já lá ia o tempo pensou, satisfeito.
Que bom que já lá ia.