Clube dos Escritores 50+ Carlos de Castro O canivete e o gol de placa

O canivete e o gol de placa,
crônica de Carlos de Castro

Por esses dias tive duas experiências. Na superfície, nada têm a ver uma com a outra. Aprofundando um pouco mais, entretanto, percebi que estavam relacionadas. Mais do que relacionadas, imersas num mesmo substratum.

Primeiro foi a conversa de um velho anestesista – cabelos brancos, cheio de histórias e sabedoria – prestes a me sedar para uma endoscopia. Mostrou-me um canivete. Claro, estava querendo brincar um pouco, diminuir a tensão habitual do momento, talvez me ajudar a embarcar no sono. Funcionou bem: no ‘instante’ seguinte a enfermeira me comunicava que o exame já havia acabado. Uma frase dele, porém, ficou na minha cabeça: “meu pai sempre dizia, um homem nunca deve deixar de ter um bom canivete”. Me lembrei de meu avô, que dizia algo semelhante. Para o mundo deles, era mesmo uma ferramenta de mil utilidades.

Deixemos o canivete um pouco de lado e vamos à segunda experiência. Foi no dia seguinte ao do exame. Estava saindo de uma visita à empresa de um velho amigo, alguém que não via há muitos anos, e meu trajeto me fez passar pela rua Madre de Deus. Mais do que isso, passei pelo trecho onde eu jogava bola quando criança. Lembrei-me imediatamente. Foi ali que eu fiz o gol mais bonito da minha vida.

Eu nunca fui nenhum craque. Como era um pouco mais alto e encorpado que a média da molecada costumava jogar na defesa. Os gols, em geral, ficavam para os ligeirinhos do ataque. Naquele dia, entretanto, uma bola sobrou, espirrada, mais ou menos no meio do nosso campinho. Eu me antecipei e com um leve toque encobri o adversário. Na sequência cheguei antes do defensor seguinte e, de cabeça, o encobri também. De repente, a bola estava pingando na frente do goleiro. Ele saia estabanado e eu vinha embalado. Com mais um pequeno toque apliquei um terceiro chapéu e entrei com bola e tudo.

Nem eu acreditava no gol que tinha feito. Foi um presente de algum deus futebolístico. Por mais que minha memória enfeite e exagere, o fato é que, pelo menos para mim, aquele foi um verdadeiro gol de placa. Ao passar por ali agora, desejei mesmo que houvesse uma pequena placa fixada no poste – único elemento ainda sobrevivente na rua totalmente transformada – lembrando o gol sensacional marcado por mim nos idos de 1965 ou 1966. 

Certo, o leitor ou leitora deve estar se perguntando: afinal, o que as duas memórias têm em comum? Estará delirando o cronista? Não voltou bem da anestesia?

Bom, o que me ocorreu é que o tempo funciona como uma gigantesca onda que nos carrega, queiramos ou não. Somos impotentes para oferecer resistência e, tal qual burro teimoso, ficar empacados, nem que seja por breves instantes. Ou, como o personagem que Chico Buarque criou na linda letra de Valsa Brasileira: “…corria contra o tempo, … rodava as horas pra trás, roubava um pouquinho…”

Não dá, sejamos realistas. Somos todos carregados por esse tsunami, incluindo, infelizmente, os poetas. Cabe a nós, com um pouco de sorte, surfar o melhor possível. No entanto, o Senhor Tempo, apesar de sua essência imperial e inexpugnável, apesar de se apresentar como inacessível aos pobres humanos, tem um lado benevolente: ele deixa cada um de nós carregar consigo suas memórias. E olhe que já somos mais de 8 bilhões de criaturas vivendo neste planetinha. Todas elas juntas, lado a lado, carregando um número inimaginável de lembranças, inclusive canivetes e gols de placa.

Não é incrível?

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