Blog Clube dos Escritores 50+ Luciano de Castro O cavalo que não gostava de mar

Luciano de Castro às voltas com o cavalo que tinha medo do mar

O cavalo que tinha medo do mar

Três homens tentavam fazer o cavalo entrar no navio ancorado no porto de Lisboa. Um deles o puxava pelo cabresto, outro empurrava-lhe a anca e o terceiro, mais afastado, o chicoteava e gritava: “ Inferno! Entra logo, cabrão!” O cavalo tinha os olhos arregalados, arfava, levantava a cabeça e batia com os cascos nas pedras, movendo o corpo para trás.

— Não adianta, barão. Ele não vai entrar. Estamos aqui labutando há quase uma hora e nada. O bicho é grande, e muito forte. Não podemos com ele.

— Lourenço está certo, senhor. Este é do tipo teimoso. Não entra nem a troco de pancada. Além disso, a porta do porão é muito baixa. Vamos ter que arrumar outro jeito.

— Pois me arrumem logo esse jeito e ponham o ginete pra dentro da nau. Que estás a dizer, Osório? É teimoso sim, mas é um puro-sangue lusitano, ora bolas! Um ótimo animal de montaria. Eu preciso dele no Brasil, inclusive como reprodutor. Resolvam logo isso, que não temos o dia inteiro. Os dois sujeitos ficaram confabulando baixinho, buscando um meio eficiente para meter o animal no navio e garantirem o emprego na quinta. Vermelho e impaciente, o barão andava de um lado para o outro, ora resmungando, ora lançando impropérios contra os dois empregados.

— Vamos cortar-lhe os cascos — sugeriu Osório. Tenho cá uma serra bem afiada. Diminuindo alguns centímetros na altura, talvez conseguíssemos metê-lo porão adentro.

 — Não vai resolver. Se lhe cortarmos os cascos, ele ficará ainda mais irritado e poderá nos morder. Além disso, continuará se debatendo ao se aproximar da entrada. O que poderíamos tentar é flexionar-lhe as pernas, amarrá-las e fazê-lo entrar de joelhos.

 — Hum, parece uma boa ideia, mas é arriscada. O animal é muito pesado e vai continuar relutando para não entrar. Com isso, é capaz de forçar a articulação do joelho, romper ligamentos e tornar-se imprestável para as tarefas no campo. Dependendo da lesão, nem pra reprodutor vai servir. O barão mandaria nos esfolar vivos se estropiássemos o seu puro-sangue. Por que não aumentamos a abertura da portinhola?

— Não há tempo pra isso. A viagem já está atrasada. O comandante é inglês e não aceitaria remendos no seu navio só por causa de um cavalo birrento.

—Tens razão, Lourenço. Poderíamos fazê-lo beber aquela poção soporífica.           

— Essa beberagem é incerta, Osório, e também perigosa. Se dermos pouco, ele não dorme; se dermos muito, podemos matá-lo. É difícil calcular a dose certa. Não te lembras do que aconteceu com o Martim? Fique tranquilo. Haveremos de resolver esta maçada e  vamos fazer esse bicho entrar no navio andando com as próprias patas.

O plano final foi posto em prática. Lourenço postou-se do lado esquerdo do animal e o manteve imobilizado com rédea curta. Pelo lado direito, Osório se aproximou, chamando-o pelo nome e acariciando-lhe o pelo e a crina. O cavalo estava sereno. Osório foi subindo as mãos  pelo pescoço do animal até chegar à cabeça, quando fechou a mão e violentamente golpeou-lhe o olho com uma pequena sovela que trazia escondida na palma da mão. O cavalo estremeceu. Lourenço repetiu a operação no olho esquerdo. Estava feito. Apática e indolente, a alimária enfim se deixava conduzir e adentrava a embarcação.

Orgulhosos da façanha, Osório e Lourenço ainda permaneceram no cais a observar a nau que deslizava lenta pelas águas de Tejo. Eram empregados eficientes. Haviam feito  um bom trabalho. Consideraram todas as possibilidades e aquela havia sido a única alternativa. O barão nunca suspeitaria deles. Aquela era uma viagem longa e cheia de perigos. Ouviam histórias de cavalos que adoeciam e eram atirados ao mar. Quando descobrisse a cegueira, o barão poria culpa naquela viagem tenebrosa, naquele porão fedorento e infestado de ratos; nunca neles, seus fiéis serviçais.

A nau sumiu no horizonte. No seu camarote, o barão viajava satisfeito, contando que teria um excelente animal para suas lides na colônia. No porão, entre sacos de  mantimentos e caixas de azeite, dormitavam homens pretos, vacas, porcos, galinhas e um puríssimo-sangue lusitano, belo, triste e finalmente dócil.   

6 comentários

  1. Que impacto esse conto, de arrepiar! O cavalo tinha medo da maldade humana, não do mar. E os malfeitores criminosos, por sua vez, medo do barão. Assim se causam cegueiras mutilantes, o brio é apagado, o cavalo – instinto pujante – se domestica aleijado. Muito terrível e dolorido. Procurei “sovela”, usada em curtumes, o animal utilitariamente esfolado, a exploração da natureza, da vida. E também achei: “Na Bíblia, em Êxodo 21:6 há uma referência a uma sovela para perfurar a orelha de um servo que não queira ser libertado, ficando assim marcado como pertencendo ao seu amo”

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  2. Como você escreve bem, Luciano. Impactante, cruel, enxuto.
    Seu conto conversa com os de Flannery O’Connor em “ É Difícil Encontrar Um Homem Bom.”

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